Realizações, Recordações e Reinvenções
A magia do oito…

Na tranquilidade das férias, o calor do início da tarde convidava ao repouso. Sob ramos de palmeiras e pinheiros que deixavam passar ligeiros raios de sol, os murmúrios doces da folhagem e dos pássaros embalavam.
Os ramos ondulavam lentamente, reconfigurando espaços quase circulares levemente justapostos, como se estivessem a descrever, teimosamente, o algarismo oito na numeração arábe, ou indo-arábica. Através deles, o meu olhar alcançou o infinito…
De imediato, a minha atenção recaiu sobre a coincidência com o dia e o mês, 8/8. Não resisti e deixei o pensamento fluir… acompanhá-lo-ia de perto até onde ele quisesse ir, livremente, a partir de um corpo cada vez mais rendido à sensação crescente de fusão com o meio envolvente como se o tempo e o espaço não existissem. E, assim, “mergulhei” na magia desse símbolo.
Na simbologia das formas, o círculo é associado ao ponto e ambos podem representar sinais de equilíbrio, perfeição, unidade e plenitude. Diferentes religiões associam estas características ao divino. O círculo também representa movimento e expansão. Sem princípio ou fim, também pode simbolizar a eternidade. Já a elegante interligação entre dois círculos talvez simbolize a cooperação! Curiosamente, na química existe a regra do octeto segundo a qual as moléculas tendem para a estabilidade quando a camada externa de electrões dos respectivos elementos químicos está preenchida com oito eletrões, alguns dos quais partilhados.
Numa circunferência, a relação entre o perímetro e o diâmetro é representado por Pi, um número irracional, infinito e sem sequências repetitivas ou padrões, frequentemente representado por 3,14. Mas, a importância desta constante excede o conceito matemático. Em qualquer circunstância, se existir um círculo, esta constante está lá, até mesmo na espiral da cadeia dupla do DNA, a molécula que armazena a informação indispensável para coordenar a formação, o desenvolvimento, a reprodução e a manutenção dos seres vivos. São todos feitos de Pi! Não admira, afinal aquilo que os une é muito mais do que aquilo que os separa! Mas não só… esta constante também existe na forma do sol e da lua, nas órbitas dos planetas, como sendo algo universal e estruturante da realidade.
É bem conhecida a afirmação “a matemática é a linguagem do universo”. Gosto de pensar que assim é e muito haveria a dizer sobre o assunto. No âmbito das representações simbólicas, ocorreu-me a interpretação qualitativa dos números e dos seus padrões (numerologia). Explorada desde a Antiguidade, se ela facilitar o alinhamento entre a visão, o sentir e a ação ou o comportamento, é bem possível que a sua influência seja positiva. Neste contexto, a potencialidade do 8 consiste, por exemplo, em equilíbrio, expansão e prosperidade.
E, não acontece frequentemente vermos beleza na vida mesmo quando ela não parece bela? O reconhecimento dessa beleza natural, seja lá de que forma for, devolve beleza à própria vida. De certa maneira, é estabelecido um reconhecimento recíproco já que a natureza é a mesma. Nesse sentido, o sentir pode facilitar o acesso a essa condição natural e universalmente bela.
Por intermédio destas deambulações, lembrei-me da frase atribuída a Santo Agostinho, teólogo e filósofo no período inicial do cristianismo – “creio para compreender, e compreendo para crer melhor” – que me sugere sempre a importância de interligar a ciência com o misticismo e a religião. De facto, para compreendermos as impressões internas e externas precisamos de quatro atributos – o pensamento (inclui a imaginação), emoção/sentimento, a intuição e as sensações – que interagem entre si para a construção da informação recebida e da resposta, por vezes com a preponderância de um desses atributos ou da combinação de alguns deles. De acordo com o que fizer sentido em cada momento, o recurso a ferramentas individualmente adaptadas para estruturar o desenvolvimento de todos os atributos e a interação harmoniosa entre eles, sem esquecer a importância do corpo nesse processo, parece sensato. Na verdade, até tenho a impressão de que não precisamos de pensar muito sobre isso… o binómio corpo-mente é tão diligente que “envia” sinais.
Nessa tarde senti-me especialmente grata e compassiva. Se for possível sentir a perfeição, o lugar ao qual o padrão 888 me conduziu pareceu-me realmente perfeito, talvez situado num local entre a terra e o céu! Impossível? Talvez não! As palavras escasseiam quando se trata de descrever sensações e percepções mas a identificação com o momento, tal e qual como ele se apresenta, na sua forma elementar, pode proporcionar uma magia divinal, incomparável e irrepetível. Sendo pessoal e intransmissível, só o próprio a poderá explorar livremente. Sintam-se convidados para sentirem essa magia em momentos inesperados e surpreendentemente perfeitos. O convite é vitalício e não há pressa… em cada etapa do processo e em qualquer lugar há sempre algo novo, peculiar e belo para desfrutar!
Pássaro de água, Agosto 2021.
Horas mágicas

O mesmo acontece com as moléculas. As interações moleculares requisitam um nível adequado de complementaridade para produzirem estruturas estáveis com arquiteturas, espaços interiores e funções específicas. A combinação de estruturas moleculares precisas origina uma variedade de formas que correspondem às necessidades de construção e manutenção dos organismos vivos. Esta característica básica reflete-se naturalmente em níveis de organização mais complexos, como é o caso das populações de organismos. Entre organismos, um nível variável e heterogéneo de complementaridades também precede a união e, com o compartilhamento dos espaços interiores, os limites da interacção física são ultrapassados. Aceder a alguns desses espaços e senti-los requer coragem, às vezes muita… Ter consciência deles, partilhar essa consciência, promover a sua comunhão revelará, seguramente, lugares belos, coerentes, inspiradores e completos. Eles representam lugares priveligiados para comunicar com autenticidade essa identidade única e perfeita tão bem representada em cada peça de Lego.
Quem resiste ao mundo mágico das construções Lego?
Cada peça tem uma forma característica, uma identidade. A partir de um conjunto de peças é possível produzir, através da sua combinação e união, múltiplas formas distintas que refletem na realidade o potencial criativo e a imaginação.
A despreocupação e descontração, tal como acontece quando nos encontramos de férias, favorecem a observação espontânea dos detalhes… a frescura do amanhecer ou a magnificência do pôr-do-sol, os sons, aromas ou sabores, as silhuetas, a leveza das rotinas ou a aceitação da imprevisibilidade. Os dias parecem mais longos e atraentes, as experiências mais revigorante e a vida desenrola num tom mais agradável. Funcionando como um catalisador, esses momentos ou períodos facilitam o acesso a esses espaços interiores resultando numa expressão mais espontânea do amor, mesmo em situações comuns. E, com o amor a fluir mais facilmente, a singularidade do momento transborda por si só em intensidade, profundidade e paixão, infinitamente… o limite é o céu!
Pássaro de água, Julho 2021.

Be gentle with yourself.
Pássaro de água, Junho 2021.

“Faz tudo como se te contemplassem”
― Epicuro
Pássaro de água, Junho 2021/ 2023.
Coisas sérias, coisas tolas

Há uns dias deparei com este título “coisas sérias, coisas tolas” e logo pensei em pássaros. O pássaro é uma coisa séria, integra o mundo natural; ser apenas de água, é uma coisa tola! Este pensamento levou a um outro, a frase do escritor japonês Haruki Murakami: “Sempre que olho para o oceano, quero sempre falar com as pessoas, mas quando falo com as pessoas, quero sempre olhar para o oceano”. Falar com as pessoas é uma coisa séria, já passar a vidinha a olhar para o oceano pode ser uma coisa tola. Imediatamente ocorreu-me a definição de loucura segundo o poeta Fernando Pessoa: “A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana; não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal; não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco; ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido; ter consciência dela e ela ser grande é ser génio”. Não obstante as diferenças, a fronteira entre tolice e loucura poderá ser, realmente, ténue. E, neste embrulhada de coisas sérias e coisas tolas, nem sempre há moderação. Podendo até querer dizer-se muito, no final diz-se pouco, ou seja, é simultaneamente sério e tolo. É importante ser rigoroso, esclarecer o entendimento sobre as coisas, claramente, desde logo com uma quantificação, recorrendo a advérbios. Ou seja, uma coisa pode ser muito ou pouco séria, muito ou pouco tola. E daqui decorrem, naturalmente, variadíssimas combinações, incluindo “coisas muito sérias, coisas pouco tolas”, “coisas pouco sérias, coisas muito tolas” e “coisas muito sérias, coisas muito tolas”.
Considerar uma coisa séria/tola subentende uma natureza dual. A propósito deste conceito ocorreu-me um exemplo comum, a radiação electromagnética captada pelo olho humano, a luz. Seja a luz ou a radiação, o seu registo pode ser puramente ondulatório (teoria ondulatória) ou puramente corpuscular (teoria corpuscular). No entanto, como todas as partículas apresentam uma natureza de onda e vice-versa (dualidade onda-partícula), estes dois registos podem ser considerados complementares (conceito subjacente à teoria da complementaridade). Este fenómeno também é observado com as partículas que constituem a matéria, tais como as moléculas e os átomos.
E se esta for a natureza fundamental das coisas? Todos reconhecemos a importância da física para a compreensão da natureza e do universo. Mais recentemente, a física quântica demonstrou que a absorção ou a emissão do campo electromagnético decorre de modo descontínuo porque consiste em parcelas discretas de energia (“quanta”), os fotões. O fotão é uma partícula sem massa intrínseca detectável que pode ser descrita como uma partícula ou uma onda. Porém, quando ele colide com a matéria, o seu momento e a sua energia podem ser transferidos. Ou seja, tudo é ao mesmo tempo matéria e energia. Esta perspetiva irá, seguramente, continuar a mudar a nossa visão sobre o mundo e o nosso quotidiano.
A nossa vida também é conduzida por dualidades, tais como satisfação/ insatisfação, agrado/desagrado, prazer/desprazer. No entanto, elas fazem parte da natureza humana. Olhar, pensar, sentir e criar a realidade sob uma perspetiva unificada que reconhece a complementaridade entre características contrárias, em si mesmo elementares, pode mudar muita coisa, ou mesmo mudar quase tudo… Na verdade, o seu efeito vai muito além daquilo que possamos, à partida, imaginar. Pode parecer tolo, mas é suficientemente sério! Aquilo que sentimos depende da forma como vemos as coisas, e da forma como as virmos assim elas existirão. O olhar do observador define a realidade. E, às vezes, vemos aquilo que elas não são em si mesmas. Independentemente disso, mesmo uma vida feliz não pode existir sem um pouco de escuridão, e a palavra feliz perderia o seu significado se não fosse contrabalançada pela tristeza; é muito melhor aceitar as coisas conforme elas surgem com paciência e serenidade (Carl Jung).
Na expressão “coisas sérias, coisas tolas” também há um conceito e o seu dual. Não são conceitos opostos nem contraditórios; o par “sério/tolo” representa a unidade e a pluralidade… até parece sério! Contudo, os conceitos pouco dizem acerca daquilo que uma coisa realmente é; dizem apenas como ela parece que é para o sujeito através da sua perceção.
A perceção é uma função cerebral complexa que analisa e interpreta sensações (respostas fisiológicas). Ela é influenciada pela interação de variadíssimos factores (fisiológicos, psicológicos, sociais e culturais) que, por sua vez, são indissociáveis da relação corpo-mente. Quanto às coisas, elas podem ser do mundo exterior (material, objetivo) ou do mundo interior (subjetivo, pessoal; pensamentos, emoções, sentimentos, memórias, imaginação, crenças, consciência…). Nenhum deles faz sentido sem o seu dual. Explorar esses dois mundos implica aprofundar os conhecimentos.
Ao longo das últimas décadas, a ciência tem proporcionado avanços notáveis nos mais variados domínios. Na área da saúde, eles têm permitido explorar a interação e a integração de diferentes níveis de informação. Em consequência disso, o conceito de medicina personalizada (adaptada ao perfil molecular, frequentemente genético, do indivíduo), preventiva ou curativa, tem sido aprofundado. Este conceito não é novo. Basta que nos lembremos da frase atribuída a Hipócrates, “é mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que a doença que a pessoa tem”. Mas, a abordagem atual é inovadora. A sua potencialidade reside na possibilidade de análise da totalidade dos elementos que constituem cada nível de informação (estudo em larga escala), em vez de analisar esses elementos individualmente, tendo por objetivo alcançar uma compreensão integrada dos fenómenos ou processos. Fico fascinada com esta possibilidade, quer pela elucidação per si, quer pelas implicações práticas!
Não há dúvida de que este é um tempo priveligiado para a ciência. No caso da medicina, ela deverá tornar-se mais holística, ou seja, progressivamente mais centrada na noção de que o indivíduo e o seu meio ambiente (mundo exterior e mundo interior) constituem uma unidade funcional. Por isso, a educação ao longo da vida para o autocuidado e, subjacentemente, para o autoconhecimento deverá assumir maior relevância no futuro.
Em face desta perceção e considerando o bem-estar um estado de razoável harmonia com a realidade do momento, uma atuação personalizada ao nível do corpo e da mente deverá resultar em benefícios acrescidos. Se esse bem-estar é alcançado através da realização de coisas “sérias” e/ou coisas “tolas”… Hum! Será esta uma questão realmente relevante? Talvez sim, talvez não…
Um coisa é certa, o mundo encontra-se em rápida mudança e transformação a todos os níveis. Neste tempo da ciência, o diálogo entre os diferentes domínios do conhecimento, da física à metafísica, é desejável e expectável. Esse olhar interdisciplinar a partir de equipas multidisciplinares de especialistas que assumam naturalmente o papel de professor e de aluno, deverá conduzir a novas e surpreendentes informações e conhecimentos sobre a natureza e a biologia humana. A sua translação para a prática só fará sentido se resultar numa melhoria da qualidade de vida.
“A ciência não é apenas compatível com a espiritualidade; é uma fonte profunda de espiritualidade” (Carl Sagan, 1995, The Demon-Haunted World: Science as a Candle in the Dark).
Com otimismo e confiança no presente, o futuro é de esperança!
Pássaro de água, Abril 2021.