Pequenos, grandes universos
Texto: Pássaro de água Ilustração: Manuela Lemos


«Se mudares a forma como olhas para as coisas, as coisas que olhas mudam.»
Max Planck
A narrativa é protagonizada por uma criança que explora a noção de interligação entre diferentes níveis de organização do mundo natural. Com uma linguagem simples, ela propõe a existência de uma natureza comum que interseta a pluralidade e a particularidade de todas as coisas, estimulando a autoreflexão e a imaginação.
I
Suri é uma menina de estatura média com olhos castanhos amendoados e cabelo ondulado da mesma cor. Sorridente e comunicativa, a expressão facial doce combina perfeitamente com o timbre melodioso da sua voz. Quando questionada sobre a preferência das cores verde e azul, a resposta é sempre a mesma, «o verde das árvores e o azul do céu», e acrescenta, «as árvores só não tocam o céu porque não têm asas.»
Ela nasceu numa região rural, habitando a mesma casa desde sempre juntamente com os pais. No pequeno lago de jardim, o habitante mais antigo é uma tartaruga corpulenta, o Orfeu. Recentemente, a família adotou dois novos membros: Cali, uma cadela de pequeno porte, com olhos esverdeados e pêlo castanho curto tom de mel; e Lua, uma gata com pêlo curto cinzento-claro e olhos azulados. A casa é circundada por pequenos arbustos que se prolongam até uma clareira, delimitando vagamente o caminho de terra até ali. Circundada por vegetação, a presença de esquilos e uma notável variedade de plantas e aves contribui para a diversidade biológica do local. O caminho de terra continua para lá da clareira, terminando junto a um ribeiro de água corrente e cristalina.
II
Suri relaciona-se com a natureza de forma orgânica experimentando uma infinidade de sensações através dos aromas, cores, formas e texturas, ou sons. Enquanto percorre o caminho até à clareira, ela gosta de sentir a natureza através do olfato. Suri fecha os olhos e foca a sua atenção essencialmente nesse sentido. Quando abre os olhos e recolhe informações com os outros dois sentidos, a visão e a audição, geralmente confirma a antevisão proporcionada pelo seu olfato. Frequentemente, Suri imagina-se um outro elemento do ecossistema, por exemplo, uma folha da árvore que ela tantas vezes abraça enquanto observa os seus ramos refletidos na água do ribeiro. Sobre essa experiência, Suri escreveu recentemente: «Corre a água no ribeiro por cima de cada pedrinha, ela salta, ligeirinha, envolvendo várias folhinhas. Folhas verdes ou douradas, algumas alaranjadas, deixam a árvore despida e o ribeiro pintalgado. Nos ramos surgirão rebentos, folhas que um dia mudarão de casa. Ah! O ribeiro, naturalmente, será a sua nova morada.» Na opinião de Suri, «os ciclos da natureza combinam a previsibilidade com a espontaneidade e originalidade.»
O espaço amplo da clareira é o local perfeito para partilhar com a natureza o seu estado de alma. Com uma flexibilidade natural, ela interliga os movimentos com agilidade e graciosidade. Quando realiza o pino de cabeça, Suri contempla naturalmente outra perspetiva que considera engraçada. Outras vezes, ela dirige a sua atenção para os animais ou as plantas, falando e cantando para eles. Em seguida, refresca a pele na água do ribeiro e com a brincadeira acaba quase sempre molhada. Mas não é aconselhável regressar a casa naquele desalinho com a roupa ainda humedecida pela água. Dependendo da estação do ano, ela permanece algum tempo num local ensolarado e seco, ou aproveita a sombra da copa de uma árvore frondosa encostando a parte posterior do seu tronco ao tronco da árvore.
Assim que entra em casa, a sua primeira ação é a higienização. Ela aprendeu que na terra, no ar e na água habitam seres minúsculos que são invisíveis ao olho humano, os microrganismos. Alguns deles podem causar doenças como acontece, por exemplo, com algumas bactérias. «Não vale a pena correr esse risco!» Contudo, muitas outras são benéficas, por exemplo, habitam o intestino onde facilitam a digestão dos alimentos, e Suri também sabe disto. Sempre que esta ideia positiva lhe ocorre, Suri dirige o olhar para a barriguinha e murmura em voz baixa:
— Obrigada, queridas bactérias! Para ela, «o agradecimento não exprime educação ou devoção, mas sim a oportunidade de cooperação e entendimento mútuo.»
III
Suri desconhecia a importância das bactérias na evolução dos seres vivos. Quando o tema foi abordado na escola, as revelações foram tão surpreendentes e inesperadas que ela não as compreendeu de imediato.
«Na altura, a Terra não era como é hoje. Existiam inúmeros vulcões ativos que libertavam muitos gases para a atmosfera, principalmente vapor de água e dióxido de carbono, para além do dióxido de enxofre que tem o odor de fósforo queimado e o sulfureto de hidrogénio com um cheiro nauseabundo a ovo podre…o ar era irrespirável! Com a formação de cianobactérias, esse cenário mudou gradualmente. Na presença da luz solar, elas são capazes de produzir oxigénio e açúcar a partir de dióxido de carbono e água. Este processo é conhecido por fotossíntese. As cianobactérias proliferaram massivamente e a proporção de oxigénio na atmosfera foi aumentando até alcançar o seu nível atual. Todos os seres vivos apresentam uma estrutura básica, a célula. Ela representa uma unidade fabril autosustentável que produz, degrada e recicla substâncias, comunicando com o extrerior através de trocas controladas de matéria e energia. É um sistema muito preciso mas também flexível.»
Para explicar a diversidade dos seres vivos, Suri costuma referir que a evolução ocorreu no sentido do aumento da complexidade, «todas as bactérias são unicelulares, mas com o enriquecimento da atmosfera em oxigénio, uma enorme diversidade de seres multicelulares, constituídos por células mais complexas, tais como plantas e animais, passou a ocupar a Terra. Atualmente, o oxigénio atmosférico é produzido essencialmente por plantas.»
IV
Com estas informações, Suri rapidamente elabora outros pensamentos enquanto fala para si mesma:
«— Estes organismos são invisíveis ao olho humano, apareceram há bilhões de anos e alguns descendentes residem no meu corpo. Eles não brincam, não falam e não riem como eu mas estão lá, permanentemente. Hum! No entanto, sou apenas eu.» A noção de que há coisas que existem, são essenciais, mas nós não as vemos pareceu-lhe, no início, muito estranha. Progressivamente, ela passou a olhar para si própria como sendo algo mais do que aquilo que os seus olhos vêem.
Fascinada com a descoberta, Suri deambula mentalmente sobre o assunto durante mais algum tempo:
«— Se as bactérias habitam praticamente todos os lugares e algumas delas até conseguem suportar condições que seriam agressivas ou mesmo letais para os seres humanos, então elas interligam o mundo natural.»
Um turbilhão de ideias atravessa agora o seu pensamento. Repentinamente, o sentimento de apreensão emerge com a associação das bactérias ao desenvolvimento de doenças. Optando por valorizar o papel da higienização e a existência de tratamentos, não só a inquietação e o desconforto desvaneceram, como também a sua atenção foi imediatamente desviada para outra questão, a respiração e o oxigénio do ar.
O oxigénio é essencial para o bom funcionamento do organismo. No entanto, a sua presença também pode desencadear danos indesejáveis. A ideia de que nada é uma “coisa” só, apesar de partilharem a mesma essência, não era nova para Suri. Mas, com o exemplo do oxigénio, ela ficou mais clara. «Os dois efeitos, desejável (construtivo) ou indesejável (destrutivo), coexistem e é impossível ter um sem ter o outro». «Apesar disso, o oxigénio será sempre um gás atmosférico e isso não muda de acordo com o seu efeito. O oxigénio não é bom nem mau, é apenas ele próprio, oxigénio.» Enquanto integrava esta noção, Suri pensou de imediato em dois sentimentos opostos que conhecia bem, a alegria e tristeza, ou as respetivas emoções, rir e chorar.
E assim, ela acrescenta algo que não lhe tinha ocorrido antes: «— Só reconheço a alegria porque conheço a tristeza, e vice-versa. E, realmente, às vezes nem sei bem se estou alegre ou triste, parece que sinto alegria e tristeza simultaneamente!»
V
Com a chegada da Primavera, a presença na natureza é mais regular e prolongada. Para justificar as suas saídas, Suri costuma dizer aos pais: «— Lá, há sempre coisas novas para descobrir e observar. Mesmo aquelas que estão presentes desde o ano anterior, se não as tivermos visto é como se elas não existissem.» Por isso, a lupa é uma ferramenta facilitadora de muitas descobertas e uma presença assídua na sua mochila, juntamente com o lanchinho que é sempre partilhado com vários esquilos afáveis e brincalhões.
No final da Primavera, a proximidade das férias de Verão e a possibilidade de rever presencialmente amigos de há longa data imprimem um colorido adicional às suas rotinas diárias. Habitualmente, as respetivas famílias costumam organizar programas muito diversos, culturais ou de lazer, para além de piqueniques junto ao rio. Mas aquilo que Suri realmente aprecia são as tardes de convívio no jardim, junto ao lago do Orfeu, na presença de Cali e Lua, sempre muito animadas e surpreendentes. Estes encontros terminam, geralmente, com o momento do lanche, sempre muito esperado por todos pelos doces e outras lambarices!
VI
Numa dessas tardes, Suri comenta com os amigos a existência de seres vivos minúsculos, invisíveis ao olho humano:
«— Não há como os separar de “nós” porque eles existem no interior de cavidades do nosso corpo. Num organismo saudável, as bactérias estabelecem com as outras células uma relação mutuamente vantajosa, uma simbiose, formando o todo que somos nós. Se estivermos felizes, as bactérias também estarão! É claro que será de uma forma diferente porque não sentem, não falam e não pensam como nós.»
Um dos amigos, o mais velho do grupo, gostaria de ser astrofísico para compreender melhor os elementos do universo. No último dia, o encontro prolonga-se normalmente até anoitecer. Geralmente, a noite é quente e o céu está admiravelmente estrelado. Enquanto observam as brincadeiras de Cali e Lua, ele articula, espontaneamente, algumas palavras:
«— Os seres vivos são feitos de um material igual ao das estrelas.»
Já deitada na relva, Suri dirige o olhar para o magnífico tom azul do céu, observa longamente os inúmeros pontos brilhantes e complementa a ideia do amigo partilhando, genuinamente, o pensamento e o sentimento que experiencia no momento:
«— Os seres vivos, dos mais simples ao mais complexos, possuem uma camada muito antiga que os interliga e assinala, uma identidade realmente universal!»

Manuela Lemos nasceu na primeira metade do século passado. Através das suas pinturas pretende louvar e celebrar a natureza e os animais. Nos temas relacionados com o infinitamente pequeno e o infinitamente grande pinta o círculo e a esfera que representa o movimento e a adaptação pacífica e em harmonia com o espaço.